Ninguém se mexe: a contra-educação de Salazar | José Morais

Ninguém se mexe: a contra-educação de Salazar | José Morais

Não sei até que ponto é pretensão crer que os estudos universitários e as investigações, quer seja nas ciências biológicas quer nas sociais, ou mesmo nas físicas, nos ajudam a ver mais claramente as variáveis que afetam o comportamento humano individual e social em contexto político. Se viermos a admitir que sim, então deveríamos fazer com que as Universidades se impliquem mais na política.

Terá sido por acaso que, uma vez realizado o golpe militar de 1926, um certo António de Oliveira Salazar, professor de finanças, conseguiu orientar o processo político no sentido de uma ditadura férrea, fundada numa enorme desigualdade educacional e cognitiva que se tornaria inevitavelmente económica e social? Ele aproveitou-se do regime militar para impor a “ordem” fascista (disciplina total, cancelamento de todas as liberdades, incluindo a de expressão); ter a seu lado um Presidente da República fantoche; criar um regime corporativo (divisório) e uma polícia política com poderes que não respeitam os direitos humanos e que se rodeiam de redes de informadores; desterrar para um campo de concentração (em Cabo Verde) os opositores mais perigosos e fazer matar os mais renitentes (de facto morreram muitos); conservar uma economia ruralista e uma “educação” que mantém o analfabetismo, assim como o alcoolismo e a doença do “futebolismo”; e abrir as portas à Igreja, ao catolicismo primário, submetendo assim a grande maioria dos portugueses à falta de capacidade crítica e de consciência política e associativa.

Este não foi um fascismo agitado como o de Mussolini nem armado e conquistador como o de Hitler. Foi um fascismo caracterizado pelo imobilismo – ninguém se mexe – de maneira a evitar tudo o que é irrequieto e, portanto, perigoso: o progresso industrial e agrícola, o desenvolvimento das ciências, a discussão política. O que fez então Salazar? Proibiu os partidos políticos, o direito à greve, e todas as organizações que escapassem ao seu controle, criou a União Nacional para o apoiar, e sobretudo criou a polícia internacional e de defesa do Estado (a PIDE), que prendia, torturava, e não raramente matava. Salazar era autoritário e antiprogressista, conservador na sua maior expressão: nada muda, nada avança. E, como também era previdente, por um lado organizou um sistema de propaganda do Estado, e por outro lado criou slogans (Deus, Pátria e Família), baseou a educação em livros únicos, fez entrar obrigatoriamente toda a juventude numa única organização de inspiração militarista: a Mocidade Portuguesa, em que o S de Salazar no cinto apertava as barrigas dos estudantes, a partir dos 7 anos, e deixava bem a claro a quem estes deviam todas as suas obrigações. E era nela que os jovens começavam a aprender os seus deveres militares.

Estava instaurado o regime de medo generalizado: medo de falar e de não falar, medo de dizer algo contra o regime ou de parecer alheio. Salazar não conseguiu evitar a guerra colonial, que se manteve de 1961 a 1974 (quase seis anos depois da sua morte e já sob a presidência do fiel Marcelo Caetano, que era muito menos inteligente e matreiro que o seu patrão de tantos anos). Caetano não soube acabar com a guerra colonial, talvez por medo que Salazar ressuscitasse. Já não havia nele inspiração para propor um Homem Novo porque este se tornara na realidade o Homem Nulo.

As Escolas Normais Superiores tinham sido fechadas em 1930 e em 1936 foram suspensas as escolas do magistério primário, substituídas por “postos escolares” com “regentes” sem preparação, mas em que o regime confiava. E as professoras não se podiam casar sem a autorização do Ministério da Educação Nacional. Nas escolas e nos liceus praticava-se a separação dos sexos. Porém, em 1958-1959 e 1959-1960, o Liceu Camões (só para rapazes) recebeu um pequeno contingente de raparigas vindas de liceus femininos, porque não havia outra solução para que as raparigas pudessem estudar na dita alínea “e”, a que conduzia aos estudos de Direito na Universidade. Isso obrigou a grandes malabarismos: os rapazes ficavam nas carteiras de trás, e as raparigas nas das frentes. Elas não entravam nem saíam ao mesmo tempo que os rapazes e tinham de ir ocupar uma sala de professores e professoras durante os intervalos. Para não se entrar em detalhes, não se dirá aqui tudo o que se passou na festa de fim de ano. Que se fique só a saber que não houve maneira de evitar certas conjunções! Será que Salazar foi informado do que se passou? Acreditamos que não!

Manter classes sociais estanques sem mobilidade profissional também tinha sido um dos objetivos de Salazar: até à segunda metade da década de 1940, o filho de agricultor devia aspirar a ser agricultor. O livro devia ser único, reaproximando a escola da religião e reduzindo a visão do mundo. A escola devia estar contra o espírito crítico e antes ter o espírito de obediência à hierarquia. De qualquer modo, todas essas restrições e outras fizeram com que na década de 1950 ainda houvesse cerca de 40% de analfabetos e a escolaridade obrigatória só foi assegurada a partir de 1965, ainda em vida de Salazar, mas quando o seu cérebro, certamente alarmado com a guerra colonial, já devia estar desacompanhando muito do que se passava na educação. Quanto aos primeiros Cursos superiores de Psicologia, eles só foram criados em janeiro de 1977 e transformados em Faculdades de Psicologia e de Ciências da Educação em novembro do mesmo ano. Três anos depois da Revolução dos Cravos! A Psicologia e a Educação tinham continuado a ser questões e matérias de reduzida necessidade!

E agora? Quando o espetro de Salazar já não é mais do que a lembrança de tempos horríveis, não devemos ser mais exigentes no que respeita aos meios e aos fins? Durante estes mais de 50 anos pós-Salazar e pós-Caetano, que fizeram as políticas governativas? Desinvestir na escola pública, conduzindo à falta de meios das escolas, à absoluta precariedade laboral dos professores, e ao descontentamento e desmotivação de alunos e professores. Não deveríamos, desde já, dar vida à formulação de António Nóvoa segundo a qual a Escola e a Universidade precisam ser defendidas como lugares comunitários e espaços públicos em que podemos, estudantes e professores, encontrar-nos para assimilar e criar coletivamente abordagens e conhecimentos? E fazê-lo por oposição ao imobilismo, à divisão e ao medo do futuro.

E é neste espírito que estas análises e sugestões também resultam do encontro do autor com colegas das Ciências Psicológicas e da Educação da Universidade de Lisboa.

Texto de José Morais, Universidade Livre de Bruxelas

Imagem: Os Frutos da Liberdade, Maria Helena Vieira da Silva